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  20:30

Crianças pedem proteção contra a violência e ajuda a irmão baleado em cartas ao Papai Noel

Quando Thalia, 7 anos, pegou o lápis para escrever sua cartinha de Natal ao Papai Noel, não tinha só um pedido a fazer. O presente dela, uma bebê reborn, ficou para o final da carta. O que a menina pediu primeiro foi um presente para o irmão.

“Querido Papai Noel, tudo bem com o senhor? Gostaria de fazer um pedido muito especial. Uma cadeira de rodas automática para meu irmãozinho de 12 anos, que não anda porque tomou um tiro quando ele tinha 2 anos. Eu amo muito ele e quero fazer ele feliz. Para mim, uma boneca bebê reborn.”

Carta que Thalia, 7 anos, escreveu para o Papai Noel. — Foto: Arquivo pessoal

O pedido de Thalia é um dos muitos feitos em cartinhas que foram entregues na campanha de Natal dos Correios e que podem ser adotadas por quem quiser presentear as crianças.

A mãe de Thalia e de Adrian, Natalie Souza Guimarães, contou ao g1 que o filho ficou paraplégico depois de ser atingido por uma bala perdida há 10 anos, no bairro São Cristóvão, em Salvador, capital da Bahia. O estado é 2º com as maiores taxas de mortes violentas do país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

A família vive atualmente no município de Lauro de Freitas, na zona metropolitana da capital baiana. Em 2019, a cidade estava em 9º lugar entre as mais violentas do Brasil. Embora tenha saído do ranking nacional, ainda ocupa a 12ª posição entre os municípios baianos com a maior taxa de homicídios, segundo o Atlas da Violência 2024.

Os irmãos Thalia (de saia rosa), Adrian e Andressa Sophia. — Foto: Arquivo pessoal

Era 7 de setembro quando o futuro de Adrian mudou para sempre. Hoje, aos 12 anos, ele vive com limitações causadas pela bala perdida que atingiu sua medula quando ainda era bebê. “Ele estava com o pai quando um rapaz foi executado na rua. Eles correram, mas o tiro acabou pegando no meu filho”, conta Natalie.

Para a mãe, ainda é difícil aceitar o que aconteceu. Adrian, por sua vez, prefere não tocar no assunto. No dia a dia, ele e a irmã Thalia reinventam brincadeiras: “Ele joga bola sentado, usa as mãos, e ela fica ao lado. É assim que se divertem”, diz Natalie.

A cadeira de rodas automática que Thalia pediu ao Papai Noel — e que a família não tem como comprar — é hoje o grande desejo do menino.

"Um dinossaur, porque tenho medo"

Distante de Lauro de Freitas, em uma favela do Rio de Janeiro, Pietro e Gabriel, ambos com 6 anos, também escreveram suas cartinhas para o Papai Noel. Eles queriam brinquedos que lhes protegessem dos tiros que ouvem.

As crianças estudam na mesma escola e ainda não sabem escrever. Por isso, a professora fez as cartinhas com o que elas pediram.

“Gostaria de ganhar um dinossauro, porque tenho medo de ficar sozinho quando dá tiro na minha rua. Se não puder, pode ser um urso. Quero um amigo”, disse Pietro.

Pietro quer um dinossauro de presente do Papai Noel — Foto: Reprodução

“Eu gostaria de pedir um urso para dormir comigo, porque eu tenho muito medo quando dá tiro na minha casa. Fico deitado no chão. Preciso do meu urso para me proteger. Se não puder, pode trazer uma mochila para eu estudar”, disse Gabriel.

Gabriel pediu um urso para protegê-lo dos tiros — Foto: Reprodução

Contexto de violência afeta presente e futuro das crianças 

O Natal sempre trouxe a Gabriela David Correia da Silva, hoje com 23 anos, a lembrança mais dolorosa da infância: a ausência do pai. Thiago da Costa Correia da Silva foi morto aos 19 anos, junto com outros três jovens, por policiais no Borel, no Rio, em 2003. Gabriela tinha apenas um ano.

“Nas festas de Dia dos Pais na escola eu tentava disfarçar, mas doía muito. Coisas pequenas viravam enormes pra uma criança lidar sozinha”, diz.

Estudante de pedagogia, ela enxerga na própria história como a violência molda a infância na periferia. “Crescemos cercados por medo, falta de oportunidade e violência. É como se a infância fosse encurtada.”

Para Victoria Lidiana, educadora popular e idealizadora do Coletivo OCICLO, a desigualdade limita o direito a uma infância plena.

“Precisamos nos perguntar se é possível um desenvolvimento psicossocial digno em espaços historicamente vistos como ameaça. São seres humanos em formação, irreversivelmente afetados por uma gestão da vida que atribui irrelevância a determinados corpos e territórios”, afirma.

Ana Claudia Cifali, do Instituto Alana, reforça que proteger a infância em territórios violentos exige rever práticas de segurança pública. “Áreas com grande circulação de pessoas não podem ser cenários de operações policiais. O direito de crianças e adolescentes não pode ser colocado em risco”, diz.

Ela lembra que a violência cotidiana — de operações policiais a tiroteios que fecham escolas — fere diretamente o direito à educação e à proteção.

Para Eduardo Ribeiro, da Rede de Observatórios de Segurança, os pedidos feitos por crianças revelam a busca por algo básico: proteção.

“Quando um pedido de presente expressa isso, vemos que o Estado falhou no cuidado daquela criança.” A exposição à violência, afirma, deixa marcas profundas. “Afeta a saúde mental e física e acompanha toda a trajetória, inclusive escolar”, diz.

"Um presente para o mundo"

Algumas cartas ao Papai Noel, entregues na campanha de Natal dos Correios não falam diretamente sobre violência, mas expressam, de outras formas, o desejo de um mundo diferente.

Entre elas, está a de Murilo Sabecca Mainardi, de 10 anos, estudante do 4º ano, que vive em Rio Claro (SP).

“Este ano eu me esforcei muito para ser uma boa pessoa; ajudei amigos, ajudei uma cachorrinha na rua que hoje é minha. Neste ano eu gostaria de ganhar um tênis de corrida para me ajudar nas aulas de atletismo. Eu calço 40-41. E também outro pequeno presente, mas isso não é para mim, é para o mundo. Isso que quero é paz. Espero que o senhor e o seu duende tenham um ótimo natal.”

Segurança pública é a principal preocupação dos brasileiros 

Pesquisa Quaest recente mostrou que a segurança pública é apontada como a maior preocupação dos brasileiros desde maio. Seis em cada dez entrevistados afirmam não se sentir seguros ao andar pela própria cidade.

O levantamento foi realizado em novembro, depois da operação policial no Rio de Janeiro que deixou mais de 120 mortos nos complexos da Penha e do Alemão.

Adrian ficou paraplégico aos 2 anos, após ser atingido por uma bala perdido. — Foto: Arquivo pessoal

 

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